‘Gesto de amor e solidariedade na hora do luto’: doação de órgãos ressignifica vida de quem doa e de quem recebe; regionalização da saúde fortalece rede de transplantes
O mês de setembro é dedicado à conscientização sobre a importância da doação de órgãos e tecidos, por meio do Setembro Verde, que busca incentivar esse gesto de solidariedade que pode fazer a diferença no futuro de quem aguarda por um transplante. “Doação de órgãos: um sim salva vidas. Doe esperança.” é o tema da campanha da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) para este ano.
Ao longo de cinco reportagens, vamos contar histórias, esclarecer dúvidas e levar você, leitor, a se aproximar mais desse tema tão delicado, que envolve uma corrida contra o tempo.
De um lado, a dor de parentes que perdem seus entes queridos e precisam pensar: doar ou não doar os órgãos? De outro, a dor de familiares que esperam, ansiosos, o retorno à vida saudável de pacientes graves que estão à espera da doação de um órgão compatível.
“Impossível não lembrar que tem uma família sentindo uma dor terrível que é a perda de um filho, naquele momento que você se enche de esperança pela vida do seu filho”. O relato emocionante, da reportagem desta terça-feira (17), é de Nayana, mãe do pequeno Davi, que, com apenas 50 dias de vida, precisou de um transplante de coração. Ela, uma enfermeira que lida com crianças internadas em uma UTI pediátrica, soube, com a doença do bebê, o que é precisar de cuidados e da solidariedade de pais em luto. Boa leitura!
Solidariedade que salva vidas
O pequeno Davi foi salvo por um transplante de coração. (Foto: Arquivo pessoal)
Como enfermeira da UTI pediátrica do Hospital Regional Norte, unidade da Sesa em Sobral, Nayana Rocha já acompanhou diversos casos de doenças e condições graves em crianças. Mas com o nascimento do filho mais novo, o pequeno Davi Rocha Ramalho, ela sentiu na pele o que é precisar de cuidados. O bebê nasceu saudável, mamando normalmente, e tudo parecia bem. Mas, com apenas 50 dias de vida, precisou ser internado. O diagnóstico assustou a família: cardiomiopatia dilatada, uma doença rara que torna as fibras musculares do órgão distendidas, prejudicando o bombeamento adequado do sangue pelo corpo. O bebê precisava de um transplante de coração.
Foram 8 meses de espera. Nesse período, chegaram notícias de doadores compatíveis, mas a recusa familiar estendeu o sofrimento da família. “Por duas vezes tivemos a notícia do potencial doador que foi frustrada com a não autorização familiar, hoje um dos principais motivos da queda na taxa de doação de órgãos”, destaca a mãe e enfermeira.
A cirurgia aconteceu no mês passado, no Hospital de Messejana, unidade da Sesa especializada no tratamento de doenças do coração, em Fortaleza. A criança se recupera bem, com reabilitação de fonoaudiologia e fisioterapia. Nayana lembra que foram meses de profunda angústia e temor pela vida do filho, mas a notícia do doador compatível veio com um misto de emoções.
“Impossível não lembrar que tem uma família sentindo uma dor terrível que é a perda de um filho, naquele momento que você se enche de esperança pela vida do seu filho. Você ora e pede a Deus conforto àquela família. Junto com a certeza que Deus realiza milagres e que está próximo de você ver seu filho sair do hospital e ter uma vida ‘normal’. Que existem pessoas que conseguem ressignificar a dor e ter um gesto de amor e solidariedade na hora do luto”, destaca.
Para a enfermeira, ter estado como acompanhante do filho trouxe reflexões no seu “ser profissional”. “Hoje entendo que, ao realizar os cuidados a um potencial doador, não estou cuidando de um ‘potencial’, eu estou cuidando da esperança que é turbinada nesse momento, estou cuidando diretamente da vida de quem está naquela fila à espera de um milagre e da vida de todas as pessoas daquela família”, ressalta.
Captação de Órgãos
Como no caso de Davi, a família que aguarda por um órgão só é informada sobre a possibilidade de cirurgia, mas não sabe de onde veio a doação. De acordo com a legislação brasileira, tanto o doador quanto o receptor, devem ter suas identidades preservadas.
No Ceará, vários hospitais estão aptos a fazerem a captação de órgãos. Na Rede Sesa, os Hospitais Regionais desempenham um papel importante nesse sentido, contribuindo diretamente para o andamento da fila de transplantes. Essas unidades atuam desde a identificação de potenciais doadores até o acolhimento e conscientização das famílias, essenciais para a autorização da doação.
Além disso, os hospitais regionais participam da logística durante todas as etapas do processo, começando pelo diagnóstico de morte encefálica até o transporte dos órgãos, fortalecendo a rede estadual de transplantes e ajudando a salvar inúmeras vidas anualmente.
Nos Hospitais Regionais do Cariri (HRC), Norte (HRN), Sertão Central (HRSC) e Vale do Jaguaribe (HRVJ), localizados respectivamente em Juazeiro do Norte, Sobral, Quixeramobim e Limoeiro do Norte, já foram captados 27 rins, 36 córneas, 15 fígados e 4 corações, somente em 2024.
Importância da conscientização
Alguns órgãos podem ser doados por pessoas vivas, mas a maior parte dos casos é de doação de pacientes com morte encefálica. O primeiro passo para se tornar um doador, portanto, é comunicar esse desejo à família, pois somente com a autorização familiar a doação poderá ser realizada. É importante lembrar que um doador pode estar apto a doar vários órgãos, ou seja: pode beneficiar até oito pessoas que, muitas vezes, têm no transplante a única alternativa de vida.
Captação de múltiplos órgãos realizada no HRC (Foto: Arquivo)
De acordo com a enfermeira da Organização de Procura de Órgãos e Tecidos (OPO) do HRC, Bruna Bandeira, o estado do Ceará possui um número expressivo de doações, sendo também referência em transplantes. “Porém, esse número pode ser melhorado e a nossa missão é levar informações para as famílias, para que as pessoas possam decidir de forma consciente. É importante conversar, desmistificar, demonstrar o seu desejo aos seus familiares, porque quando existir a possibilidade de doação, somente a família vai poder decidir”, reforça a enfermeira.
Logística para salvar vidas
Do aceite manifestado pela família que resolveu doar, até a captação do órgão, há uma logística que envolve diferentes equipes, desde o trabalho de abordagem com os familiares de quem teve o diagnóstico de morte encefálica, até o translado dos órgãos, feito por transporte aéreo, com o auxílio da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer).
Translado da equipe e dos órgãos captados é feito por transporte aéreo para garantir agilidade no processo (Foto: José Avelino Neto)
O trabalho sensível é liderado pela Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cihdott). O passo inicial é o acolhimento da família. “É a parte fundamental do processo”, enfatiza o enfermeiro da CIHDOTT do HRVJ, Samuel Araújo. “É preciso trazer a família para próximo da equipe, para que ela entenda como funciona, se sinta confortável e segura para dizer o sim para a doação”, explica.
Depois do aceite da família, é realizada uma série de exames e avaliações, que compõem um protocolo padrão utilizado para confirmar a morte encefálica do paciente. Quando os resultados indicam que a captação pode ser feita, uma verdadeira corrida contra o tempo acontece para que o órgão seja levado e transplantado o quanto antes no doador compatível, que, em geral, já está em uma fila de espera.
“É uma verdadeira operação de guerra. Deixamos todos os setores avisados para que tudo fique no ponto, e para que a captação ocorra sem nenhum problema”, explica o enfermeiro e membro da Cihdott do HRSC, Wandson Barros.
A grandiosidade dessa logística, que envolve outros serviços, equipes de outras unidades, dezenas de profissionais do hospital onde o procedimento é feito, e algumas vezes até dois helicópteros, como na sexta e mais recente múltipla captação de órgãos que ocorreu no HRVJ, no último dia nove de setembro, desperta a atenção da população, reação que, na opinião de Samuel Araújo, ajuda a conscientizar as pessoas.
“Antes, esse assunto era distante da realidade do interior, e agora estamos vivendo essa realidade. É bom que as famílias vejam isso e entendam a importância dessa decisão”, pontua.
Fonte: SESA